sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

[SAGACIDADE]


(Eliza Araújo, Paula Peixoto, Luís Venceslau)

Vou botar fogo na casa
Depois espalhar a brasa
Só pra poder te queimar

Vou te culpar por tudo
Depois me fazer de mudo
Só pra não te escutar

Vou te pôr na geladeira
Te esquecer a noite inteira
Só pra te ver congelar

Vou te virar pelo avesso
Comer de garfo o apreço
Que um dia vi me encantar

E se sobrar algo teu
Vou misturar cor no breu
Do teu destino de fim
Que assim fico eu
Rindo do que deu

Tirar você de mim.

Foto: Black Look Evil Eye Necklace - sheinside.com


sábado, 18 de janeiro de 2014

[BERENDINA VICE CITY]

Era um moreno, latino, alto. Barba mal feita e voz viril, posuda. Me lembrava o garoto propaganda da Gillete, que se não me engano, faliu ano retrasado com toda aquela queda da bolsa e tendência a Terceira Guerra Mundial. O mundo mudou. O mundo já não girava em seu eixo. Mas era moreno, latino, alto. De longe, um atrativo cara de idade. Tinha um jeito altivo de olhar e um jeito simpático de dirigir frases incompletas. Bom moço... Dava ares.

Era vizinho de frente, 204. Um arquiteto bem sucedido precocemente. Matinha sempre verde o jardim da varanda. Punha o lixo na frente todas as manhãs. E quelauqer um que examinasse aquele lixo diria que era alguém inconstante – casas sem cozinha, mulheres sem orelhas, a melhor parte da torta alemã. Era amigável com os cachorros, dois pastores de Picardia. Conquistara a cordialidade dos insetos... Esses povoavam alegremente a terra do jardim. Deixavam viçosos o ipê. Suas margaridas, hortências, flores exóticas, como o Oleandro Branco eram tão atrativas quanto falsas. Mal dava pra perceber a plasticidade de seu jardim, já que a moda do mundo novo era ter coisas que vão morrer depois de você. “O plástico chegou para ficar”, disse Oswald Montepregos, um cientista com cara de doente mental que usava um par de óculos na cara e não conseguia parar de coçar o nariz.

A frente da casa era amistosa, independia do sol que realçava as nuances amarelas sobre os muros baixos e as plantas. Tinha um ar de casa de família. Família com crianças, duas ou três. Ideia que vinha abaixo a primeira olhada cuidadosa, pela ausência de qualquer objeto que lembrasse a presença de pequenos.

Calçava os sapatos compenetrado, sentado naquelas cadeiras largas após o jardim. Cadeiras compradas em uma loja pro-movimento retrô do centro da cidade. Tinha uma mania de deixar a luz da varanda acesa. Fluorescente. De ler até tarde e dormir na rede.

Esquecia as cartas na caixa do correio, o jornal às vezes espalhado pelo chão. Assinava o “Diário” e o “Correio do Mercador”. Não era do comércio, mas sempre cortava a coluna de Matos Gusmão, um comentarista bairrista que era oposição ao governo e pagava tributos ao jornal para ter quinze ou trinta linhas de sangue no jornal.

A televisão era um modelo antigo, talvez uma Tooner TV dos anos 50, que dava para ver do lado de cá. Tinha botões grandes e uma resolução meio turva. O som dela era geralmente baixo.

Tinha ainda uma vitrola, daquelas que a caixa de som ficava na tampa. Tio Frederico tinha uma dessas na casa de praia em Buerlindas. A vitrola devia viver cheia de poeira... Ficava do lado da televisão. No ângulo estreito em que eu observava a vida alheia.

Embora houvesse trações de modernidade evidenciados pelos objetos geométricos coloridos que ficavam por todas as prateleiras, desde a varanda, a casa tinha um ar bucólico. Um tanto nostálgico. Quieto demais. Típico de quem vive a tomar chá, dormir e refletir.

Observava eu os pormenores, da minha janela comprida, que dava para a frente da rua. Todas as impressões sobre o moço eram fruto da minha dedução, basiada na minha inerente curiosidade feminina. Confabulações de progesterona. Tive que saber que ele fumava cigarro de menta e tomava vinho pro-seco. E isso foi culpa da aproximação causada pelo meu instinto metódico de organização e minha mania de rotinas e listas. Não suportava ver o jornal dele espalhado no chão do batente e dispunha-me a arrumá-lo e entregá-lo cada vez que me ocorria.

Não sabia muito sobre o vizinho da frente...

Foi um dia, numa manhã comumente corrida que eu o tive no abraço e no meio das pernas. Ocasional, nada intencional. Não tive opção, e ele muito menos.


Que sensação mais estranha. Sentia-me uma puta e tremia descaradamente refletindo o movimento do corpo dele junto ao meu. Mas tentei me segurar. Sentia a vibração. Pra mim, só queria que ele parasse. E parou. Suei, mas desci e disse obrigada. Fiquei esperando vê-lo ir naquele veículo. Um monstro azul. Decidi nunca mais pegar carona na moto do vizinho da frente. Bons moços precisavam de mais que isso para chegar a tal ponto. Qual era mesmo o nome dele? 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

[COM O PERDÃO DA PALAVRA]


Navegar é preciso. Navegar. Devagar. Não vagar. A nada dessas coisas se apegar. Quando um dia bom passa e escurece, diante dos olhos, navegar. Quando a roda viva não vai a despeito da fé, devagar. Quando a felicidade sem porquê se anuncia, não se apegar. Não diminuí-la ao momento. Não enclausurá-la na sua possessão. Deixar ser, viver e se propagar.
*

Ao fechar os olhos, ver o bem no mundo e o bom da vida. Ensaiar essa fé diariamente no subconsciente para que do ensaio, saia pelos poros, pelas ruas e fique com você no dormir e no acordar.
*

Ter amor e doar. Em amor que não se doa não há ciclo. Em ciclo que não se faz não ha vida. Porque aquilo que se move é vivo. Logo é vivo aquilo que se muda. Que medra. Que melhora.
*
Ao amar, melhore. Ao crer, mude. Ao mudar, comece por dentro.

Foto: Diego Nóbrega
Flickr: http://www.flickr.com/photos/diegonobrega

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

[DISPENSA]



Dispenso
Amar com mar
e
Amor com dor.
De lado
rimas que não juntam além do som
não me agregam
não alegram
não calam
nem falam.
Fico com calma
e alma.
Que com essas me alimento

E vou vivendo, 
além de existir.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Dia lindo.


Dia lindo começou diante dos meus olhos. Não sei se tinha sido àquelas exatas cinco horas que o sol havia começado a brilhar e revelar as cores das folhas de outono. Mas de qualquer forma desci as escadas, peguei um copo d’água e, lutando contra os meus olhos lacrimejantes, contemplei os primeiros minutos da manhã. Algumas coisas já aconteciam na cidade. Os motoristas de ônibus inauguravam a avenida larga como que cortando-a e abrindo caminho para os poucos veículos menores que trafegavam lerdos, condutores de olhos lacrimejantes, provavelmente.

Eu e minha água, relutantes em desbravar o dia. Mas fui hidratado e devidamente acordado por um café. Tirei o chevette da garagem e pus Roberto Carlos no toca cd. Maria me diz que devo mudar. Devo querer coisas mais modernas. Som que toca músicas da internet. Não sei disso, se já me faz tão feliz um toca cd.

Me juntei aquelas pessoas na rua. Incomodado de seguir um caminho tão longo calado. Querendo estar morrendo de amor como o Roberto, mas tinha chegado na fase que eu mesmo chamo amor. Aquela com o turbilhão já passado, onde há mais silêncio e palavras ditas no olhar.

Isso me fez lembrar de como Maria era linda. Algumas partes do seu corpo eram rígidas, enrijecidas pelo balé da infância, que ela secretamente treinava com uma colega da escola. Sua postura era impecável. Seus lábios bem cheios. Seus dentes, fortes. Por onde se alimentava. Por onde se fechava. Por onde sorria para me seduzir.

Lembrei dos meus papéis pendentes na mesa do escritório, mas poderia me inspirar passar em seu prédio. Então peguei uma artéria e desci na Gil de Góes onde ficava o seu lar. Uma das coisas que mais admirava sobre Maria era que ela tinha um lar. Tudo na sua casa tinha personalidade, tudo era simples, de fácil assimilação, tudo em algum ponto se conectava. Seu jardim dava mesmo flores enquanto o meu eu não molhava regularmente. Sua fruteira tinha frutas frescas e perto do relógio da cozinha tinha uma foto de meu lugar favorito no mundo: Praga. Nunca fui, mas amo através de Milan Kundera. Com um pouco de vergonha de ter lido aquele livro inteiro há tanto tempo e nunca mais ter me aventurado a terminar outro livro.

Também há livros em Maria. Muitos espirituais, muitas histórias clássicas, outras contemporâneas. Reconstruí Maria e seu lar na minha mente. Mal podia esperar. Estacionei debaixo da minha árvore de costume. Dei bom dia a seu Emanoel e subi as escadas de dois em dois degraus. Cheguei na porta do 301 ofegante. Bati três vezes na porta mesmo assim. É claro que Maria já estava acordada, composta, de café tomado e lendo as notícias do dia no jornal.

Abriu. Parei. Soltei meu último fôlego desesperado. Pelo que via no ângulo da porta, parecia mesmo que eu previra toda a cena. Maria acordada, composta, cheirando um pouco a café, e o jornal sobre a mesa. Mas que pontada senti no peito quando vi que tinha cortado seus cabelos mais que os meus.

Engoli seco e enchi os olhos, mas não disse nada.

- Você não gostou.
- Não é isso, nega. Eu só não me preparei...
- Discordo que sempre se tenha que se preparar pra isso.
- Mas por quê você...
- Por quê tão curto? Queria ver mais meu rosto e usar argolas enormes.
- Mas argolas você sempre usou.
- Mas queria ver como seria, se só o resto da beleza me bastaria.
- Maria, seu cabelo era tão lindo.
- Mas esse que eu tenho aqui ainda é o mesmo cabelo.
- Mas eu não entendo... Como vai ser pros trabalhos? Quem vai querer uma atriz de cabelo tão baixinho?
- Não sei, Antônio. E me dói que você não entenda que eu acho o meu natural belo. Sem tiaras, sem coques, sem tranças embutidas. Eu me vejo bonita assim. Vejo mais meus olhos, minhas maçãs – dizia tocando seu rosto -, sinto o meu olhar mais expressivo.
- Claro, você continua linda.
- Mas de onde veio essa idéia de cortar seu cabelo tão curto?
- Queria parecer mais com minha bisa.


Agora Maria também tinha olhos molhados. Os meus tinham se secado na discussão. Cansei de negar a mulher que me acolhia, não podia meu ego se machucar com a escolha dela. Dei um passo adiante. Lhe dei um abraço. Cheguei ao seu pescoço com mais facilidade e respirei fundo o seu cheiro de flor de manhã.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

[NÃO TER A VERGONHA DE SER]


Não sei o nome do meu anjo, mas sei que ela existe. E é mulher. Pra mim é meio que espelho, nem feio nem bonito, apenas podendo refletir tudo o que eu sou e do que me aproprio. Meu anjo incansavelmente trabalha. Muito frequentemente me diz em palavras mais angelicais que as minhas que “poderia ser pior”. É tão estranho estar na cozinha batendo ovos para o omelete e escutar de repente meu anjo me dizendo isso, palavras que chocam de frente com meus pensamentos – longe das chamas do fogão. É um embate que chega a ser injusto, porque minha indecisão, tristeza, dúvida, cansaço nunca tem chance de ganhar. Sentimento que fica estatelado ali no peito, com cara de pouco, com cara de bobo, com cara de que não merece atenção. Então eu sigo pensando em coisas melhores, lembrando de dias mais lindos, lendo coisas que me elevam a consciência, vendo o mundo através. Mas o mau agouro não me deixa um dia. E sempre vem bater ali, no mesmo lugar, fazendo cansar, às vezes chorar, mas nunca preparado pra o que diz o meu anjo. Pra o que nele faz de mim, um eu de músculos, carne, osso e pele, poderoso em si, sem nem saber a quem deve a graça de ser feliz.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

[NUA E CRUA]


Caminho com dificuldade. Você vê que esforço faço pra me levar adiante. Mesmo assim, sempre erro no auge do meu cuidado. Então descuido sem desespero. Sem exagero no destoque, no despensamento. E despensando vejo a vida como ela é. Inofensiva de tantos ângulos, cíclica em tantos pontos, frágil em tantos porquês. A vida fluida, fria, oca. Você me vê insistindo viver assim e me vê louca. Penso: você tem um recalque nos olhos que sempre te faz olhar mesma coisa; e eu uma falha na ideia que sempre me joga no mesmo erro – sem que eu sequer me mexa. Imperfeitos que somos, deuses de nossos desejos, não nos afastemos muito. De mãos dadas, vamos sair pra ver o sol.