quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

[PORTAS RETRATOS]


Sentei no sofá da sua sala a primeira vez atônito. Incerto do que dizer, do que fazer, de por onde começar minha entrega. Algo naquele sorriso fez os meus segredos pularem do meu peito desgovernados, ditos, meramente expostos: carne na mesa de operação, para que ela com eles, fizesse o que lhe apetecesse. Podia desorganizá-los e romper suas terminações nervosas. Suturá-los depois de lhes tirar a melhor memória de dentro. Poderia fazer incisões gigantes neles, e deixá-los sangrar no metal frio até que a morte os separasse de mim.

Por algum motivo me mantive sereno. Não lhe dissera que meus segredos o eram. Mas penso que ela sabia. Andava faceira de pés no chão da sua sala. A casa era o seu mundo aberto pra mim. Mundo que cheirava
diferente ao abrir o portão. Mundo de lances de escada acima, na altura de quem só sonha. No chão de sua casa tão alta eu via que seus pés eram tortos, que não sentiam nunca todo o apoio que a gravidade lhe dava de presente. A respiração, a voz, os cabelos emaranhados na altura do ombro eram também presentes inimagináveis, os quais não se podia macular. Maculá-los poderia ser sabê-los, invejá-los, cobiçá-los, querê-los em outras de estatura maior, menor, mais curvas, menos covas, corcundas, mais caladas. Nada nela me inspirava medo. Tudo nela me inspirava segredo. Mais deles para compensar os que, desgovernados, me deixavam sem assunto. Quando iam ao encontro do seu imaginário, ela assentia com a cabeça, engolia o vinho, sorria um sorriso não inteiro.

Seus porta-retratos portavam momentos que não entendia. Gente de costas pra lente, de frente pro mar. Cabeças cortadas nos lados, pessoas sem foco sorrindo. Era o mundo representado na estante, sem palavras para o narrar. No nosso círculo havia os que viviam de costas pros outros imersos no seu silêncio. Os que não se importavam com o que os outros pensavam deles, os que nada viam, mas iam seguindo algo que lhes movia adiante.


- Life is what happens to you while you're busy making other plans.
- Como?
- É o que diz a música, nessa parte.
- Ah, sim... você fala do John.
- É. Talvez.
- Mas a gente vive fazendo planos enquanto vive.
- Que planos você faz agora, enquanto estamos nessa sala?
- Quero ser uma das pessoas na foto.
- Qual delas?
- A que está naquele porta-retrato, que você ainda não tem no aparador.
- Quer mais vinho?
- Sim.
- Darling, darling, darling...
- Gosto dessa música.
- Falo com você. De você.
- Você escolhe bem os vinhos e as trilhas. E sofás também.
- Talvez eu só seja boa com pequenas escolhas.
- Pequenas escolhas podem mudar uma noite. Excitar o amor. Salvar uma vida.
- Se tivéssemos a eternidade, faríamos mais ou menos planos?
- Beberíamos mais.
- Amaríamos menos.
- Erraríamos menos ou mais?
- Eu teria errado menos na sétima série.
- Eu queria ter a chance de fazer diferente.
- A sétima?
- Me dá mais vinho.
- I'm just sitting here watching the wheels go round and round.
- Estamos ficando bêbados.
- É esse disco.
- Em 2005 eu perdi alguém muito importante.
- Morreu?
- Caiu da mudança. Me atrapalhei, não arrumei direito. Não coloquei na
caixa com as coisas frágeis, nem deixei este lado virado pra cima.
- Deixar um amor escapar assim é como não poder repetir a sétima série.
- Você não sente a gravidade. Nem cabe essa comparação.
- E onde esse amor cabe?
- Nessa música, nessa sala. Na distância que meus pés não conseguem
dar conta de alcançar. Em quase dez anos daquele cheiro na minha
memória.
- Vinho?
- Sempre.
- Você faz a vida parecer uma aventura misteriosa.
- Tenho alguns arrependimentos.
- Eu tenho poucos. Diria até que quase nenhum.
- Talvez eu também devesse me concentrar nas pequenas escolhas. Mas eu
não sei nem escolher o pão que compro, enquanto a decisão de ir embora
ronda a minha cabeça.
- Eu sempre escolho pão francês.
- Me ensina a ser assim.
- Então escolhe uma música. O disco acabou.
- Coloca aquela do Daniel Johnston, que diz que o amor verdadeiro me
encontrará no fim.
- Mais vinho?
- Mais. E que essa música esteja certa.
- Um brinde a isso.
- E foda-se a eternidade.



. por Eliza Araújo e Raquel Medeiros