domingo, 28 de setembro de 2014

[MUITO MANHÃ]


Silêncio no mundo, palavras em mim. Soam ao pé do ouvido sem quem as diga. Vibram o suficiente pra me levantar. As palavras me tem; no compasso delas me anuncio nos feitos e nos não-feitos; naqueles que nesse dia precisam sair direitos, direto da cabeça pras mãos, das mãos para o papel, do papel para o sentimento de dever cumprido.

As palavras que me soam de além, ou aquém, me dizem que estar inquieto é estar vivo. Acordo e me movo. Nos livros, palavras não minhas, significadazinhas com a ajuda do meu querer. No sofá, minha preguiça não autorizada. Na porta minha pressa, que me bate sem que eu queira, me chamando de um lugar que é maior que eu, para o dever. Na porta, ela presa, tesa no que ainda preciso fazer. Na cozinha, meu apreço quente solta vapor sobre a mesa de canto. Me chama para uma exorcização do sonho, um chacoalhado de cabeça, goles sem pensar, quase nada para ser.

Não há muito o que narrar no silêncio que desbravo e furo com meus passos, meu sono, minha congestão e minha confusão. Me parece hora propensa, suspensa, densa para eu também calar em mim o que não merece quebrar este ou nenhum outro estado de graça. 

terça-feira, 2 de setembro de 2014



[CANÇÃO]


Do jeito que se mexia, naquelas meias trançadas que Fitgerald num livro chama tantas vezes de stockings, parecia que se amava. Se amava naquele corpo, daquele jeito, dentro daquela música que tocava. Se amava por direito; sem pleito de lado algum, a despeito dos que se continham dançando num balanço de conformidade, pesado pra idade, confuso pro coração.

Nada lhe prendia a não ser as meias. O que lhe prendia, no entanto não lhe  impedia o sangue de descer pelos pés, o calor de subir pelas canelas, a música de se chocar com a percusão de dentro, de coisa viva pulsando, querendo, buscando vida e encarnação, fazendo demarcação de passo, constância de canção.


De compasso descabido, de descabelo comprido, nada que precisasse explicar a quem quer que fosse. Nada que lhe custasse a liberdade de dançar como queria, apoiar-se na estrutura que lhe mantinha em pé, empostar a fé que lhe cabia na cabeça erguida e peito aberto. Sem dúvidas, sem dívidas, sem sanções. Aberto no mundo, mas preso nas canções. Preso apenas pelo compasso teso, certeiro em continuar, em não acabar na canção indo embora quando o coro canta mais baixo. É que ser pra sempre era compromisso; como era mudar apenas um pouco. Conservar apenas o louco que cantava os coros de outrora no ouvido de agora, definindo o então.    

Ilustração: Gabriel Araújo